sexta-feira, 7 de março de 2014

A matéria que eu não consegui fazer

É chocante chegar ao local de um acidente de trânsito com vítimas fatais minutos após a colisão dos veículos que vinham em alta velocidade. Sentir o calor das máquinas interrompidas e testemunhar os ocupantes inertes, opacos e sem pulsação, é algo que fixa na memória. O jornalista chega com o objetivo de produzir sua melhor matéria e tem de se manter firme diante da cena. Já passei por várias situações assim nestes 11 anos de jornalismo diário. Não é tarefa fácil, mas quem ouve, lê ou assiste, precisa estar informado. Essa é a missão e pronto. Mas e quando as vítimas são seus amigos? São pessoas do seu convívio? Aconteceu comigo em 2005, porém, de uma maneira diferente. Não cheguei ao local logo após o acidente.

Morei na Rua Tiradentes, em Suzano, por mais de 15 anos. Ali passei a infância, adolescência e começo da vida adulta. Diante da casa onde vivia, no começo dos anos 90, o campinho de terra das partidas de futebol e as rodadas de bolinha de gude, deu lugar a um residencial, que rapidamente ficou pronto. A molecada da vizinhança se entrosou com os "meninos dos predinhos" e a amizade evoluiu. 

Dois novos moradores ganharam destaque na nossa turma. Ambos usavam aparelhos fixos nos dentes, um santista o outro corintiano. Pouca diferença de idade. Um era um goleiro quase profissional e o outro jogava razoavelmente bem na linha. O primeiro namorava sério e o segundo quase sempre na solteiro. Neste caso, ele frequentava nosso bando com mais frequência. Um era o Rogério e o outro, Thiago, mais conhecido como Fininho. E "Kabout" era o nome da balada que dominava a noite suzanense nessa época. 

Além da vida noturna, nosso grupo gostava de um futebol. Em 1998, um campeonato no "Areião" (em frente onde hoje é o shopping de Suzano) foi a atração daquele ano, bem como as festas no Tênis Clube, jogos de vôlei do Suzano no Portelão e os shows na Ovni, em Mogi. Época boa.

O tempo passou e em 2005 eu já era repórter do jornal Mogi News. Não morava mais na Rua Tiradentes, no entanto, os amigos dos "Predinhos" continuavam lá. Fininho, que passou uma temporada morando em Portugal, tinha acabado de voltar a Suzano. Estava cheio de gás e tinha planos de começar a fazer faculdade. Se reencontrou com o amigo Rogério e reativaram a forte amizade, ali mesmo, nos "Predinhos".


Em uma sexta-feira (junho de 2005) cheguei na redação por volta das 8h30. Dei uma olhada na capa do jornal do dia e logo depois a chefe de reportagem me entregou a pauta do dia: um acidente com vítimas fatais na "descida da Coca" durante a madrugada em Mogi das Cruzes. Fui para o Corpo de Bombeiros, em Brás Cubas e vi o carro bastante destruído em frente a delegacia (o distrito policial fica ao lado do quartel dos bombeiros). Era uma cena que fazia parte da minha rotina, pois naquela época trabalhava como repórter na editoria de polícia do jornal e sempre fazia este tipo de cobertura

Vi o carro prata e pensei: a batida foi feia. Entrei no quartel e conversei com o sargento que atendeu a ocorrência. Batemos um papo, ele me deu detalhes do que viu quando chegou ao local do acidente. Disse que o veículo bateu violentamente em um poste. Fiz mais perguntas e logo em seguida ele me entregou as fichas com os nomes e endereço das vítimas. Nessa hora eu paralisei. 

Os jovens mortos eram Rogério e Fininho. Até hoje não sei explicar direito o que senti naquele momento. Contei para o sargento que as vítimas eram meus amigos. Ele testemunhou minha palidez e me acalmou . 

A partir daquela hora eu não era mais o jornalista que iria começar a apurar mais uma história de acidente de trânsito com vítimas fatais. Eu era o rapaz que tinha acabado de receber a notícia de morte de dois "super chegados". Um outro amigo nosso também estava com eles no carro, mas graças a Deus se feriu levemente. Liguei para o meu irmão para contar e ele tinha acabado de receber a notícia. Ficamos extasiados.

Quando sai do quartel dos bombeiros olhei novamente para o carro danificado na porta da delegacia. Mas, dessa vez, vi o carro com outros olhos. Imaginei várias coisas. Naquele momento eu desmoronei e falei para a fotógrafa Luciana, que me acompanhava nessa pauta, que eu não iria dar prosseguimento na matéria.

Bastante abalado, liguei na redação e conversei com a chefe. Expliquei que eu não conseguiria escrever uma linha daquilo. Não sei se fiz o certo, mas eu não tinha condições psicológicas. A chefe entendeu, me dispensou da reportagem e escalou um outro repórter para a missão. 

Dos dois amigos que morreram, Thiago, o Fininho era o mais próximo de mim. Talvez porque vira e mexe estava com a nossa turma. Fininho vivia em casa. Ele e meu irmão faziam "rolo" com roupas. Você me dá essa camiseta que eu lhe entrego uma bermuda. No esquema de escambo. Foi aí que ele batizou meu irmão com o apelido de "coxa". Ele tinha 22 anos quando se foi. Uma semana antes do acontecido eu vi o Rogério em uma padaria de Suzano. Estava com o pai dele. Me cumprimentou sorrindo, como sempre. Morreu aos 24.

Permanece a lembrança de duas pessoas do bem e cheias de vida. A gentileza de Rogério e a tiração de sarro de Fininho ficaram na memória. Os dois sempre estavam juntos e se foram juntos naquela madrugada do dia 16 de junho. Essa foi a matéria que eu não consegui fazer.

2 comentários:

  1. É meu amigo, infelizmente os acontecimentos muitas vezes ocorrem de forma a nos pegar de surpresa. Mas assim é a vida, arquitetada aos moldes do Grande Criador. A missão dos nossos amigos foi cumprida e nos restou a saudade, a lição de que devemos sim aproveitar a vida, porém com responsabilidade. Devemos sorrir sempre, amar o próximo. Continuemos a nossa missão, promovendo o bem, através de nossas profissões, das mais simples ações, sendo amigos de todas as pessoas, mesmo das que nãos conhecemos, mas que mesmo assim são atingidas por nossas palavras. Continuemos seguindo e passando adiante o exemplo de amizade e jovialidade deixada por nossos eternos amigos.

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